“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
(Maiakóvski)
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
(Maiakóvski)
Para que não precisemos esperar pelo futuro para darmos voz ao silêncio daqueles que não farão parte da história oficial, gostaria de poder dialogar - incitada pelos manifestos que circularam no site da Unicamp, em particular o manifesto da bancada dos professores do Conselho Universitário - sobre as idéias que construíram o repúdio de professores em relação ao movimento estudantil e às suas estratégias. Não tomos aqui os professores como sujeitos das nossas relações cotidianas, implicados diretamente no fazer pedagógico, mas como sujeito político que ao fazer uma fala pública, assume uma posição no interior de um "campo político".
Apesar de reconhecer a universidade como um lugar de exercício de idéias também reconheço, apoiada na teoria do discurso, que as palavras não significam nada por si mesmas. As palavras estão implicadas em disputa de poder, de modo que elas não podem ser apartadas da posição que ocupam os que falam. Num jogo em que na maioria das vezes não são os estudantes os que dão as cartas, esta fala não se presta a estabelecer assertivas de verdade sobre fatos e pessoas, mas tão somente produzir outros sentidos por dentro das contradições tanto do discurso quanto das práticas que marcaram uma situação particular de conflito com enormes desdobramentos políticos e pedagógicos.
Ao longo desses quase dois meses em que o movimento estudantil esteve na cena nacional algumas palavras foram recorrentes entre aqueles que se posicionaram criticando ou repudiando as suas ações: democracia, violência, privilégio, racionalidade entre outras. Penso que temos elementos para produzir extensos e profundos debates riticando ou repudiando as açes em que o movimento estudantil esteve na cena nacional, algumas palavras foram recorrentes entresobre essas palavras pelos sentidos que cumprem na tessitura da vida social. Este texto se propõe então a quebrar o silêncio e conclamar outras vozes que não partilham das interpretações dadas a fazerem o mesmo, sob risco dessas interpretações, dado o lugar da sua enunciação, virem a ganhar estatuto de verdade.
Inicialmente, gostaria de destacar que a democracia não pode ser entendida como um conceito racional positivo, fixo e estável, mas como um conceito que abarca interesses e projetos históricos distintos. Nessa perspectiva, há pelo menos duas formas de se pensar a democracia: aquela que a concebe como esfera estritamente político-institucional e aquela que a concebe como forma de vida social. Em um conceito ampliado, podemos falar de democracia social, cuja ênfase reside na questão da igualdade: econômica, política, educacional, entre outras.
No Brasil, ainda estamos por construir um modelo democrático que combine justiça social e participação ativa com representação política. A democracia representativa nos espaços de poder institucionais dadas as precárias condições sociais da democracia produz e reafirma interesses privados em nome do interesse público. É embrionária ainda a constituição de uma força popular num país marcado pela fome e pelo analfabetismo, capaz de interferir decisivamente na condução dos rumos da vida do país. Por outro lado, os grupos que se constituem como resistência ao controle da vida social por determinadas classes historicamente providas de condições favoráveis ao exercício da democracia, são considerados ameaça à ordem estabelecida e combatidos por esses mesmos setores que acreditam na perfeição do nosso modelo social.
A compreensão da plenitude da democracia é dada pelos lugares sociais que se ocupa. Os índios, os camponeses, os sem teto, os remanescentes de quilombos, os homossexuais não defenderiam a existência de uma plenitude democrática no Brasil. A plenitude democrática é uma condição daqueles que foram incluídos pela democracia, que usufruem dos seus princípios, dos seus valores e dos seus benefícios. Nessa perspectiva, o país ao qual se referem os professores em seu manifesto, não é o mesmo país em que vivem brasileiros não incluídos pela ordem democrática.
O movimento estudantil de maio de 2007 bloqueou entradas de prédios, mas abriu as portas, ante ao conflito institucional estabelecido, para revelar relações de poder e por sua vez, as fragilidades da democracia universitária, que não se restringe, como querem alguns, a ocupação de prédios públicos. Na Unicamp, o que se pode entender como "equilibrado estágio democrático" que os estudantes, em suas estratégias de luta, haviam desestabilizado? Os estudantes representam uma fração minoritária nos colegiados deliberativos, não podiam até à ocupação da Reitoria ocorrida recentemente organizar o processo de escolha de seus representantes, nas questões de conflito acadêmico e no suposto exercício do direito ao contraditório o juízo é aferido por aqueles que dispõem de maior peso de representação, os professores, que estão em melhores condições de representar as suas posições e defendê-las. Isso não quer dizer que os professores não possam tomar posições não corporativas. O que está em questão é o sistema de representação que torna desiguais as relações de poder. O diálogo, a negociação são palavras carregadas de encanto, mas quando o conflito de posições entra em convulsão sobrepõe-se a hierarquia, momento em que se revelam os devidos graus de poder de cada um. Nessa perspectiva, de forma semelhante a outros lugares sociais a universidade se assenta em relações hierárquicas, necessárias para manter a ordem social estabelecida, e nisso reside o seu "equilibrado estágio democrático". Feitas essas constatações, penso que o esvaziamento de algumas instâncias colegiadas por parte dos estudantes não enfrenta propositivamente o problema. O entendimento que os professores devam ter representação majoritária nos colegiados deliberativos merece um debate acadêmico em que possamos colocar a democracia na universidade como questão para a sociologia, a filosofia, a história, enfim, para os campos de conhecimento em que ela for pertinente. Ainda precisamos enfrentar como debate a pertinência ou não da adoção de formas políticas consolidadas na sociedade no interior da universidade. Assim colocamos a discussão num patamar muito mais elevado do que aquele que elege os professores como o versus dos estudantes.
Voltando ao manifesto dos professores, a afirmação que a ocupação da Dac (Diretoria Acadêmica) era uma ação política de "cidadãos privilegiados", merece um debate no interior desta Universidade. O que chama a atenção não é o posicionamento político diante das ocupações, mas o discurso conservador que qualifica os estudantes de universidades públicas como privilegiados. Etimologicamente, privilégio significa "lei excepcional concernente a um particular ou a poucas pessoas; favor, graça" (Dicionário Houaiss). O Brasil é um país onde historicamente a luta por direitos é entendida como luta por privilégios. Num país desigual, o discurso conservador conduz a que nos sintamos culpados por aquilo que conquistamos, ao invés de colocar em questão a própria sociedade que produz e mantém as desigualdades. Seriam os estudantes "cidadãos que gozam de privilégios" porque eles enfrentaram um dos mais concorridos vestibulares do país e conquistaram o direito de estudar numa universidade pública? A meu ver, estar na universidade pública, com professores qualificados, condições de estudo etc. não configura privilégio, afinal nenhum estudante conquistou esta condição por lei excepcional, por graça ou favor. Além disso, a educação pública de qualidade é um direito garantido pela constituição a todos os brasileiros, de modo que ela constitui um direito de cidadania. No entanto, é público que neste país, a universidade não existe para todos, assim como não é para todos os benefícios da democracia liberal. Incluir os que estão de fora, fora da sociedade, antes de tudo, é a grande causa civilizatória que precisamos enfrentar; aos que estão incluídos, que o silêncio e a apatia política não seja o preço da sua inclusão. A crítica à universidade, portanto, não pode ter como foco os incluídos, mas a sociedade desigual que construímos, desigualdade que interessa a determinadas classes manter e cuja ordem poucos desejam ou se dispõem a subverter.
Já é tempo de combatermos o discurso conservador que visa minimizar a ação do Estado no que se refere à educação pública superior. O conto de fadas de uma universidade de elite não se sustenta diante da existência de amplos setores que dependem exclusivamente das bibliotecas e dos laboratórios das universidades, assim como das políticas de desenvolvimento estudantil. Fernando Pessoa, num dos seus poemas mais conhecidos dizia que nunca havia conhecido quem tivesse levado porrada e que todos os seus conhecidos tinham sido campeões em tudo, príncipes na vida. Diferentemente de Fernando Pessoa não estamos cercados de príncipes. A realidade da vida de muitos estudantes desta instituição, em particular, é de labuta diária para sobreviver sem trabalho ou para equilibrar estudo e trabalho, trabalho precarizado e explorado, na maioria das vezes, ou para sobreviver segundo aquilo que permite as bolsas de estudo, para aqueles que lograram recebê-las. A pobreza é também uma face desta Universidade e pode ser encontrada no fundo dos quintais das casas de luxo do bairro de Barão Geraldo ou em cortiços de concreto espalhados pelo bairro, moradias com um único ambiente, mas com a função de quarto, sala e cozinha, pagas a duras penas por estudantes desta instituição.
De fato, há grupos de elite na universidade a quem não interessa a autonomia, porque a privatização do espaço público lhes traz grandes recompensas. De igual modo, a universidade carrega dentro de si os conflitos da sociedade como um todo, o que rompe com esta idéia de universidade como um lugar distinto da sociedade. Nessa perspectiva, há na universidade a mesma indiferença que caracteriza a elite brasileira em relação à corrupção política, à condição dos pobres, à violência e ao abandono do Estado – marcas da fragilidade do projeto social liberal – indiferença que se traduz na compreensão que "vivemos há muitos anos uma vida política nacional de plena democracia e de estado de direito", afirmação do manifesto. Plena democracia e estado de direito para quem? Diante dos acontecimentos que envolvem o Congresso Nacional, o poder executivo e judiciário, ao lado da impunidade, da guerra travada entre polícia e crime organizado, das vidas mutiladas daqueles que precisam necessariamente andar pelas cidades, diria que estamos muito mais próximos de um estado de exceção do que de um estado de direito. A propósito, os chamados "desvarios" dos estudantes, que segundo os professores signatários do manifesto publicado no site da Unicamp "tangenciam o crime comum", estão muito longe daquilo que estamos acompanhando cotidianamente como crime neste país.
A forma como a Universidade de Campinas, através do seu grupo dirigente, enfrentou a tensão e o conflito de interesses entre segmentos da comunidade universitária coloca em xeque a sua autoridade para julgar como antidemocrática e violenta a ocupação da Dac. O movimento estudantil, mesmo reconhecendo a destituição da sua condição de sujeito político, cedendo, portanto, à hierarquia da instituição e reconhecendo maior poder de influência dos professores, legitimou a existência de uma Comissão de Mediação e reiterou, com algumas pequenas modificações a carta por ela proposta, no intuito de encontrar uma saída satisfatória para todos os lados no conflito estabelecido. Havia uma sinalização da Comissão de Mediação que a Reitoria tinha a disposição de reconhecer a carta. Em resposta à assembléia do dia 26 de junho que deliberou por esses encaminhamentos, a Reitoria convocou uma reunião com os diretores de Unidade (todos professores) e em seguida convocou a bancada de professores do Conselho Universitário para apreciar a questão. Pelo desfecho, esses segmentos reiteraram a posição da Reitoria de não negociar com a Dac ocupada, ignorando desta forma o esforço da Comissão de Mediação e a disposição dos estudantes de resolver o conflito. Por que as bancada de estudantes e funcionários que formam o Conselho Universitário não foram convocadas pelo reitor? É conhecida na história política do país tal forma de resolver conflitos: destitui-se o poder daqueles que podem representar ameaça à realização de uma idéia ou de um projeto e se elege um grupo de confiança capaz de dar legitimidade a certos interesses em disputa.
Por ora diria que este fato político confirma o quão é desigual e, portanto, antidemocrática a relação entre professores, funcionários e estudantes desta instituição universitária. Se ocupar prédios é uma ação violenta e antidemocrática, eleger um grupo e dar a ele exclusivamente o poder de decisão numa instituição que se diz primar pelo diálogo e pela diferença, não educa e não favorece um novo aprendizado do exercício da política. Da mesma forma, este fato não diferencia a Universidade de outras instituições do país, que no exercício da política, firmam apoios e favorecem determinados grupos em detrimento de outros. A violência, portanto, tem muitas faces, e a violência simbólica que se mostra nas relações de poder é de igual modo um ato de força que marca a disputa de legitimidade entre a ação legal e a desobediência civil. Dito isso, acredito que precisamos colocar sob suspeita o entendimento que "é no ambiente acadêmico que combatemos a ignorância". O ambiente acadêmico também produz e legitima a sua própria ignorância porque somos sujeitos enraizados em uma sociedade, em uma cultura, em uma história, e essas são as condições de produção das idéias e das práticas que movem nosso fazer científico. Portanto, este ambiente carregado de projeto iluminista também comporta negação, regressão, degradação, daí a cautela para não tomarmos os seus progressos de forma automática, indefinida, natural, mas na sua temporalidade e provisoriedade. De igual modo, como cautela, a luta contra a ignorância não pode se converter no apagamento daqueles que não se enquadram na ordem do discurso racional.
As instituições da sociedade precisam construir melhores condições de exercício democrático. De fato, não podemos admitir a ocupação de prédios como recurso permanente de tensionamento político. Por outro lado, não podemos admitir as práticas autocráticas dos dirigentes das instituições de ensino superior e do seu aparato burocrático. A garantia de espaços políticos de interlocução das pautas estudantis, a liberdade de organização, manifestação e participação democrática dos estudantes nas decisões da universidade pode fazer florescer este espaço de racionalidade, de diálogo e de respeito às diferenças que todos parecem almejar. O diálogo implica necessariamente no reconhecimento da existência do outro, no reconhecimento do igual direito de participar das decisões da vida social e da construção do seu destino, de forma que o dialogo como premissa da democracia não pode se confundir somente com o direito de ouvir e ser ouvido, mas com condições objetivas de exercício da palavra, que perpassa pela ampliação do espaço público e de composição política que efetivamente torne possível o exercício democrático do poder.
A universidade é uma instituição pública, espaço de educação da sociedade, e não uma empresa na qual quem tem mais títulos está em condição de decidir pela vida de todos. Um melhor equilíbrio na participação de professores, funcionários e estudantes nas instâncias de decisão não pode mais ser enfrentado como ameaça à instituição, mas como exercício pedagógico necessário que permita aos estudantes, futuros dirigentes, não serem vencidos pela força da violência burocrática, mas persuadidos pela força das idéias e do argumento.
A forma como a Universidade de Campinas lidará com o tema das punições terá como implicações não apenas aspectos legais e normativos, mas sociais e pedagógicos. Todas as causas que motivaram a deflagração do movimento estudantil eram legitimas. A responsabilidade com o patrimônio, que sendo público, também lhe pertence, foi comprovada pela Comissão que inspecionou a Dac logo após a desocupação ocorrida no dia 28 de junho. Aliás, como prova dessa responsabilidade, os estudantes discutiram em assembléia o ressarcimento de bens caso houvesse alguma depredação do patrimônio. Se a ocupação em si, na ausência de dano ao patrimônio for o elemento a desencadear o processo disciplinar, viveremos um retrocesso na história e na pedagogia. Punição às lideranças por atos de natureza política, são práticas de sociedades autoritárias. Lideranças não fazem movimentos sozinhas, mas puni-las é uma forma exemplar de conter futuros movimentos. Tronco aos líderes rebeldes! Foi assim que no passado se educou para o medo e para a submissão. Hoje, as formas são mais sutis, mas não menos violentas para aqueles que quebram a ordem instituída. A ameaça que paira sobre os estudantes é de suspensão à expulsão, tal como foi noticiado no site da Unicamp, como se pudéssemos educar uma geração para depois contê-la e silenciá-la. Que isso não nos seja indiferente!
Apesar de reconhecer a universidade como um lugar de exercício de idéias também reconheço, apoiada na teoria do discurso, que as palavras não significam nada por si mesmas. As palavras estão implicadas em disputa de poder, de modo que elas não podem ser apartadas da posição que ocupam os que falam. Num jogo em que na maioria das vezes não são os estudantes os que dão as cartas, esta fala não se presta a estabelecer assertivas de verdade sobre fatos e pessoas, mas tão somente produzir outros sentidos por dentro das contradições tanto do discurso quanto das práticas que marcaram uma situação particular de conflito com enormes desdobramentos políticos e pedagógicos.
Ao longo desses quase dois meses em que o movimento estudantil esteve na cena nacional algumas palavras foram recorrentes entre aqueles que se posicionaram criticando ou repudiando as suas ações: democracia, violência, privilégio, racionalidade entre outras. Penso que temos elementos para produzir extensos e profundos debates riticando ou repudiando as açes em que o movimento estudantil esteve na cena nacional, algumas palavras foram recorrentes entresobre essas palavras pelos sentidos que cumprem na tessitura da vida social. Este texto se propõe então a quebrar o silêncio e conclamar outras vozes que não partilham das interpretações dadas a fazerem o mesmo, sob risco dessas interpretações, dado o lugar da sua enunciação, virem a ganhar estatuto de verdade.
Inicialmente, gostaria de destacar que a democracia não pode ser entendida como um conceito racional positivo, fixo e estável, mas como um conceito que abarca interesses e projetos históricos distintos. Nessa perspectiva, há pelo menos duas formas de se pensar a democracia: aquela que a concebe como esfera estritamente político-institucional e aquela que a concebe como forma de vida social. Em um conceito ampliado, podemos falar de democracia social, cuja ênfase reside na questão da igualdade: econômica, política, educacional, entre outras.
No Brasil, ainda estamos por construir um modelo democrático que combine justiça social e participação ativa com representação política. A democracia representativa nos espaços de poder institucionais dadas as precárias condições sociais da democracia produz e reafirma interesses privados em nome do interesse público. É embrionária ainda a constituição de uma força popular num país marcado pela fome e pelo analfabetismo, capaz de interferir decisivamente na condução dos rumos da vida do país. Por outro lado, os grupos que se constituem como resistência ao controle da vida social por determinadas classes historicamente providas de condições favoráveis ao exercício da democracia, são considerados ameaça à ordem estabelecida e combatidos por esses mesmos setores que acreditam na perfeição do nosso modelo social.
A compreensão da plenitude da democracia é dada pelos lugares sociais que se ocupa. Os índios, os camponeses, os sem teto, os remanescentes de quilombos, os homossexuais não defenderiam a existência de uma plenitude democrática no Brasil. A plenitude democrática é uma condição daqueles que foram incluídos pela democracia, que usufruem dos seus princípios, dos seus valores e dos seus benefícios. Nessa perspectiva, o país ao qual se referem os professores em seu manifesto, não é o mesmo país em que vivem brasileiros não incluídos pela ordem democrática.
O movimento estudantil de maio de 2007 bloqueou entradas de prédios, mas abriu as portas, ante ao conflito institucional estabelecido, para revelar relações de poder e por sua vez, as fragilidades da democracia universitária, que não se restringe, como querem alguns, a ocupação de prédios públicos. Na Unicamp, o que se pode entender como "equilibrado estágio democrático" que os estudantes, em suas estratégias de luta, haviam desestabilizado? Os estudantes representam uma fração minoritária nos colegiados deliberativos, não podiam até à ocupação da Reitoria ocorrida recentemente organizar o processo de escolha de seus representantes, nas questões de conflito acadêmico e no suposto exercício do direito ao contraditório o juízo é aferido por aqueles que dispõem de maior peso de representação, os professores, que estão em melhores condições de representar as suas posições e defendê-las. Isso não quer dizer que os professores não possam tomar posições não corporativas. O que está em questão é o sistema de representação que torna desiguais as relações de poder. O diálogo, a negociação são palavras carregadas de encanto, mas quando o conflito de posições entra em convulsão sobrepõe-se a hierarquia, momento em que se revelam os devidos graus de poder de cada um. Nessa perspectiva, de forma semelhante a outros lugares sociais a universidade se assenta em relações hierárquicas, necessárias para manter a ordem social estabelecida, e nisso reside o seu "equilibrado estágio democrático". Feitas essas constatações, penso que o esvaziamento de algumas instâncias colegiadas por parte dos estudantes não enfrenta propositivamente o problema. O entendimento que os professores devam ter representação majoritária nos colegiados deliberativos merece um debate acadêmico em que possamos colocar a democracia na universidade como questão para a sociologia, a filosofia, a história, enfim, para os campos de conhecimento em que ela for pertinente. Ainda precisamos enfrentar como debate a pertinência ou não da adoção de formas políticas consolidadas na sociedade no interior da universidade. Assim colocamos a discussão num patamar muito mais elevado do que aquele que elege os professores como o versus dos estudantes.
Voltando ao manifesto dos professores, a afirmação que a ocupação da Dac (Diretoria Acadêmica) era uma ação política de "cidadãos privilegiados", merece um debate no interior desta Universidade. O que chama a atenção não é o posicionamento político diante das ocupações, mas o discurso conservador que qualifica os estudantes de universidades públicas como privilegiados. Etimologicamente, privilégio significa "lei excepcional concernente a um particular ou a poucas pessoas; favor, graça" (Dicionário Houaiss). O Brasil é um país onde historicamente a luta por direitos é entendida como luta por privilégios. Num país desigual, o discurso conservador conduz a que nos sintamos culpados por aquilo que conquistamos, ao invés de colocar em questão a própria sociedade que produz e mantém as desigualdades. Seriam os estudantes "cidadãos que gozam de privilégios" porque eles enfrentaram um dos mais concorridos vestibulares do país e conquistaram o direito de estudar numa universidade pública? A meu ver, estar na universidade pública, com professores qualificados, condições de estudo etc. não configura privilégio, afinal nenhum estudante conquistou esta condição por lei excepcional, por graça ou favor. Além disso, a educação pública de qualidade é um direito garantido pela constituição a todos os brasileiros, de modo que ela constitui um direito de cidadania. No entanto, é público que neste país, a universidade não existe para todos, assim como não é para todos os benefícios da democracia liberal. Incluir os que estão de fora, fora da sociedade, antes de tudo, é a grande causa civilizatória que precisamos enfrentar; aos que estão incluídos, que o silêncio e a apatia política não seja o preço da sua inclusão. A crítica à universidade, portanto, não pode ter como foco os incluídos, mas a sociedade desigual que construímos, desigualdade que interessa a determinadas classes manter e cuja ordem poucos desejam ou se dispõem a subverter.
Já é tempo de combatermos o discurso conservador que visa minimizar a ação do Estado no que se refere à educação pública superior. O conto de fadas de uma universidade de elite não se sustenta diante da existência de amplos setores que dependem exclusivamente das bibliotecas e dos laboratórios das universidades, assim como das políticas de desenvolvimento estudantil. Fernando Pessoa, num dos seus poemas mais conhecidos dizia que nunca havia conhecido quem tivesse levado porrada e que todos os seus conhecidos tinham sido campeões em tudo, príncipes na vida. Diferentemente de Fernando Pessoa não estamos cercados de príncipes. A realidade da vida de muitos estudantes desta instituição, em particular, é de labuta diária para sobreviver sem trabalho ou para equilibrar estudo e trabalho, trabalho precarizado e explorado, na maioria das vezes, ou para sobreviver segundo aquilo que permite as bolsas de estudo, para aqueles que lograram recebê-las. A pobreza é também uma face desta Universidade e pode ser encontrada no fundo dos quintais das casas de luxo do bairro de Barão Geraldo ou em cortiços de concreto espalhados pelo bairro, moradias com um único ambiente, mas com a função de quarto, sala e cozinha, pagas a duras penas por estudantes desta instituição.
De fato, há grupos de elite na universidade a quem não interessa a autonomia, porque a privatização do espaço público lhes traz grandes recompensas. De igual modo, a universidade carrega dentro de si os conflitos da sociedade como um todo, o que rompe com esta idéia de universidade como um lugar distinto da sociedade. Nessa perspectiva, há na universidade a mesma indiferença que caracteriza a elite brasileira em relação à corrupção política, à condição dos pobres, à violência e ao abandono do Estado – marcas da fragilidade do projeto social liberal – indiferença que se traduz na compreensão que "vivemos há muitos anos uma vida política nacional de plena democracia e de estado de direito", afirmação do manifesto. Plena democracia e estado de direito para quem? Diante dos acontecimentos que envolvem o Congresso Nacional, o poder executivo e judiciário, ao lado da impunidade, da guerra travada entre polícia e crime organizado, das vidas mutiladas daqueles que precisam necessariamente andar pelas cidades, diria que estamos muito mais próximos de um estado de exceção do que de um estado de direito. A propósito, os chamados "desvarios" dos estudantes, que segundo os professores signatários do manifesto publicado no site da Unicamp "tangenciam o crime comum", estão muito longe daquilo que estamos acompanhando cotidianamente como crime neste país.
A forma como a Universidade de Campinas, através do seu grupo dirigente, enfrentou a tensão e o conflito de interesses entre segmentos da comunidade universitária coloca em xeque a sua autoridade para julgar como antidemocrática e violenta a ocupação da Dac. O movimento estudantil, mesmo reconhecendo a destituição da sua condição de sujeito político, cedendo, portanto, à hierarquia da instituição e reconhecendo maior poder de influência dos professores, legitimou a existência de uma Comissão de Mediação e reiterou, com algumas pequenas modificações a carta por ela proposta, no intuito de encontrar uma saída satisfatória para todos os lados no conflito estabelecido. Havia uma sinalização da Comissão de Mediação que a Reitoria tinha a disposição de reconhecer a carta. Em resposta à assembléia do dia 26 de junho que deliberou por esses encaminhamentos, a Reitoria convocou uma reunião com os diretores de Unidade (todos professores) e em seguida convocou a bancada de professores do Conselho Universitário para apreciar a questão. Pelo desfecho, esses segmentos reiteraram a posição da Reitoria de não negociar com a Dac ocupada, ignorando desta forma o esforço da Comissão de Mediação e a disposição dos estudantes de resolver o conflito. Por que as bancada de estudantes e funcionários que formam o Conselho Universitário não foram convocadas pelo reitor? É conhecida na história política do país tal forma de resolver conflitos: destitui-se o poder daqueles que podem representar ameaça à realização de uma idéia ou de um projeto e se elege um grupo de confiança capaz de dar legitimidade a certos interesses em disputa.
Por ora diria que este fato político confirma o quão é desigual e, portanto, antidemocrática a relação entre professores, funcionários e estudantes desta instituição universitária. Se ocupar prédios é uma ação violenta e antidemocrática, eleger um grupo e dar a ele exclusivamente o poder de decisão numa instituição que se diz primar pelo diálogo e pela diferença, não educa e não favorece um novo aprendizado do exercício da política. Da mesma forma, este fato não diferencia a Universidade de outras instituições do país, que no exercício da política, firmam apoios e favorecem determinados grupos em detrimento de outros. A violência, portanto, tem muitas faces, e a violência simbólica que se mostra nas relações de poder é de igual modo um ato de força que marca a disputa de legitimidade entre a ação legal e a desobediência civil. Dito isso, acredito que precisamos colocar sob suspeita o entendimento que "é no ambiente acadêmico que combatemos a ignorância". O ambiente acadêmico também produz e legitima a sua própria ignorância porque somos sujeitos enraizados em uma sociedade, em uma cultura, em uma história, e essas são as condições de produção das idéias e das práticas que movem nosso fazer científico. Portanto, este ambiente carregado de projeto iluminista também comporta negação, regressão, degradação, daí a cautela para não tomarmos os seus progressos de forma automática, indefinida, natural, mas na sua temporalidade e provisoriedade. De igual modo, como cautela, a luta contra a ignorância não pode se converter no apagamento daqueles que não se enquadram na ordem do discurso racional.
As instituições da sociedade precisam construir melhores condições de exercício democrático. De fato, não podemos admitir a ocupação de prédios como recurso permanente de tensionamento político. Por outro lado, não podemos admitir as práticas autocráticas dos dirigentes das instituições de ensino superior e do seu aparato burocrático. A garantia de espaços políticos de interlocução das pautas estudantis, a liberdade de organização, manifestação e participação democrática dos estudantes nas decisões da universidade pode fazer florescer este espaço de racionalidade, de diálogo e de respeito às diferenças que todos parecem almejar. O diálogo implica necessariamente no reconhecimento da existência do outro, no reconhecimento do igual direito de participar das decisões da vida social e da construção do seu destino, de forma que o dialogo como premissa da democracia não pode se confundir somente com o direito de ouvir e ser ouvido, mas com condições objetivas de exercício da palavra, que perpassa pela ampliação do espaço público e de composição política que efetivamente torne possível o exercício democrático do poder.
A universidade é uma instituição pública, espaço de educação da sociedade, e não uma empresa na qual quem tem mais títulos está em condição de decidir pela vida de todos. Um melhor equilíbrio na participação de professores, funcionários e estudantes nas instâncias de decisão não pode mais ser enfrentado como ameaça à instituição, mas como exercício pedagógico necessário que permita aos estudantes, futuros dirigentes, não serem vencidos pela força da violência burocrática, mas persuadidos pela força das idéias e do argumento.
A forma como a Universidade de Campinas lidará com o tema das punições terá como implicações não apenas aspectos legais e normativos, mas sociais e pedagógicos. Todas as causas que motivaram a deflagração do movimento estudantil eram legitimas. A responsabilidade com o patrimônio, que sendo público, também lhe pertence, foi comprovada pela Comissão que inspecionou a Dac logo após a desocupação ocorrida no dia 28 de junho. Aliás, como prova dessa responsabilidade, os estudantes discutiram em assembléia o ressarcimento de bens caso houvesse alguma depredação do patrimônio. Se a ocupação em si, na ausência de dano ao patrimônio for o elemento a desencadear o processo disciplinar, viveremos um retrocesso na história e na pedagogia. Punição às lideranças por atos de natureza política, são práticas de sociedades autoritárias. Lideranças não fazem movimentos sozinhas, mas puni-las é uma forma exemplar de conter futuros movimentos. Tronco aos líderes rebeldes! Foi assim que no passado se educou para o medo e para a submissão. Hoje, as formas são mais sutis, mas não menos violentas para aqueles que quebram a ordem instituída. A ameaça que paira sobre os estudantes é de suspensão à expulsão, tal como foi noticiado no site da Unicamp, como se pudéssemos educar uma geração para depois contê-la e silenciá-la. Que isso não nos seja indiferente!
"Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde". (Bertold Brecht)
Campinas, 29 de junho de 2006.
Eliana Felipe
Estudante de Pós-graduação da Faculdade de Educação