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sábado, 26 de maio de 2007

Autoritarismo e inconstitucionalidade: os decretos do governador Serra, o projeto de "super Executivo" e as mobilizações dos estudantes paulistas

Andriei Gutierrez
(Aluno da Unicamp)

O conjunto de decretos expedidos pelo governador José Serra no início do seu mandato não corresponde somente a políticas de intervenção governamental na autonomia universitária. Muito menos a políticas de fiscalização e submissão das atividades das universidades aos interesses e controles da sociedade como muito se alardeou. É preciso atentar para os fatos e analisar o impacto profundo que os decretos representam nas sociedades paulista e brasileira.
Analisados em seu conjunto, os decretos do atual Governo do Estado de São Paulo materializam uma política de construção autoritária de uma espécie de "super Executivo" constituído pelo Governador e por seus Secretários indicados. Autoritária sim, porque não foi discutida nem deliberada na instância representativa responsável pela feitura das leis, no caso a Assembléia Legislativa de São Paulo, e porque se utiliza dos recursos repressivos do Estado para implantá-las "na marra" para o conjunto da sociedade, como estamos vendo no tratamento dispensado aos estudantes paulistas que resistem a aceitá-las.
O projeto conservador de construção autoritária do "super Executivo" em São Paulo significa a experiência preparatória para um futuro Governo Federal do PSDB, uma espécie de especialização do "governo das medidas provisórias" de Fernando Henrique Cardoso. A idéia é vincular todos os recursos orçamentários e sua aplicação à "canetada" do "homem-forte" do Executivo, pessoa que dita as regras e se protege numa estrutura supostamente fiscalizatória constituída por seus secretários e um conjunto de órgãos de execução por estes compostos. Lembra em muito a idéia próxima do Leviatã de Thomas Hobbes: uma vez feito o pacto social e instituído o governante e a estrutura executiva a seu serviço, gozam de direitos absolutos por meio da aplicação de uma política "econômica-orçamentária-administrativa", que vigora até a eleição seguinte. Vejamos como funciona o projeto em seu conjunto.
O decreto 51.630, de 9 de março de 2007, cria um sistema que concentra no âmbito do Executivo todo o controle e fiscalização anual orçamentário estatal, no caso específico o Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e Municípios, SIAFEM/SP. Há uma grade de gastos anuais previstos pela Programação Orçamentária da Despesa do Estado que impõe um contingenciamento orçamentário às unidades administrativas, às autarquias e às empresas mistas e engessa todo remanejamento de verba às deliberações do próprio Executivo. No caso dos reajustes e políticas salariais, conforme o decreto 51.660, de 14 de março, o projeto de construção autoritária do "super Executivo" submete as necessidades relativas a salários e benefícios das diferentes unidades administrativas, autarquias e empresas mistas ao projeto econômico do Executivo, por meio da Comissão de Política Salarial, que em primeira instância depende da Programação Orçamentária e em última instância da "canetada" do governador. Segundo o referido decreto também elege-se um órgão do Executivo submetido à Comissão de Política Salarial, que é a Secretaria de Gestão Pública, como fórum de negociação e instância de análise das reivindicações e recursos relativos a salários, vantagens ou benefícios de qualquer natureza. Aliás, é interessante observar como a linha política do "super Executivo", que é garantida por seu "homem-forte", ampara-se numa ampla rede de proteção do mesmo através da constituição e fragmentação do Executivo em diferentes pastas ou Secretarias, objeto do decreto 51.460, de 1o. de janeiro de 2007. Delineia-se também, no conjunto de decretos, qual é a ambição do projeto global: a redução draconiana do aparelho estatal, por meio do decreto 51.471, de janeiro de 2007, que veda toda e qualquer admissão de pessoal, entendida agora como um "caso excepcional" a ser aprovado pelo próprio Governador do Estado. Fato que leva à precarização dos serviços prestados à sociedade assim como a uma degradação das condições de trabalho dos servidores públicos.
A outra faceta desse projeto autoritário é a sua inconstitucionalidade. Sua aplicação imediata, no Estado de São Paulo, esbarra com algumas disposições legais da Constituição Federal de 1988. É aqui que entram as Universidades Estaduais Paulistas e a luta política legítima dos seus estudantes.
O artigo 207 da Constituição Federal determina que "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão"; seu parágrafo primeiro assegura às mesmas o direito de admitir professores, técnicos e cientistas estrangeiros. Como se pode ver, o conjunto de decretos tira às universidades sua autonomia administrativa, de gestão financeira e de contratação, contrariando direitos garantidos pelo artigo 207 ao não só interferir sobre contratações mas também engessar a aplicação orçamentária. Mas não é só isso. O decreto 51.460, que dispõe sobre a organização básica administrativa do Estado, ao separar os ensinos básico, técnico e superior que antes constituíam a Secretaria de Educação, nas Secretarias de Educação, Desenvolvimento e Ensino Superior, respectivamente, interfere no que diz respeito ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Por sua vez, o decreto que organiza a Secretaria de Ensino Superior, n. 51.461, de 1o. de jan. de 2007, contraria o parágrafo primeiro do artigo 218 da Constituição Federal que assegura que "a pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências". O referido decreto vem explicitar de modo verbalizado uma prática inconstitucional que vem vigorando implicitamente na última década tanto nas políticas de financiamento de pesquisas do Governo Estadual como do Governo Federal, por meio da políticas da FAPESP e da CAPES. Conforme o artigo 2, inciso III do mesmo decreto, cria-se uma falsa dicotomia entre "pesquisa básica" e "pesquisa operacional", priorizando o segundo tipo. No atual contexto de contingenciamento de verbas, isto significa a priorização das pesquisas com possíveis valores mercadológicos deixando de lado as pesquisas básicas voltadas à preocupação com o progresso das ciências.
É neste sentido que as mobilizações dos estudantes da USP, Unicamp e Unesp, que eclodiram nos últimos meses e que se intensificam nos dias atuais, são um bastião legítimo de defesa da nossa democracia, na medida em que lutam para resguardar o princípio de representação legislativa contra um projeto de construção autoritária de um Executivo antidemocrático via decretos, e também na medida em que defendem a autonomia universitária e a preocupação com o progresso das ciências que são necessários a um projeto de nação soberana, ambos reconhecidos e garantidos pela Constituição de 1988. Se esta última e seus princípios representam algo à sociedade brasileira, todos os setores mobilizados da sociedade deveriam apoiar as reivindicações dos estudantes paulistas e avançar a defesa da democracia brasileira através da revogação dos decretos.

Campinas, 22 de maio de 2007.