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domingo, 20 de maio de 2007

QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA


Combates pela história

Para pensar sobre os problemas que enfrentamos na mobilização de nosso instituto, faz-se necessário aqui retomar uma curta história sobre o posicionamento de alguns intelectuais sobre os problemas pelos quais passamos há décadas, mas que se mostram mais presentes do que nunca...

“Adorno, o filósofo que se debruçava tão insistentemente sobre as contradições, era ele próprio contraditório. Coerente com sua convicção de que a dimensão anti-ideológica do pensamento se expressava na denúncia das camuflagens criadoras de harmonias e na capacidade de fazer surgirem as contradições, o pensador não tinha nenhum motivo para recusar-se a reconhecer suas contradições internas.
As contradições, contudo, às vezes apareciam de maneira desconcertante, perturbadora, mesmo para a mente que em princípio se declarava aberta para reconhecê-las e aceitá-las. Uma contradição que esteve presente ao longo de praticamente toda a sua trajetória na maturidade como pensador foi a da relação entre a exigência de um constante aprofundamento da crítica na teoria e a insuperável dificuldade com se defrontava para promover esse aprofundamento no nível em que ele passava a ser decisivo: o da unidade da teoria com a prática. Para sermos mais precisos: o nível da ação política.
Para preservar a criticidade radical, era preciso simultaneamente engajar-se na ação coletiva (ninguém faz política sozinho) e preservar ferozmente a independência individual (ninguém pode abrir mão de sua personalidade e continuar a ser livre).
Quando não viam como segurar firmemente ambas as extremidades da corrente, Adorno e Horkheimer tendiam a abandonar a exigência da inserção no processo prático, porque a ação de quem está lutando junto aos outros é condicionada por movimentos coletivos que, para se concretizarem com alguma possibilidade de êxito, exigem concessões do indivíduo aos seus companheiros. Os dois filósofos temiam sujar-se eticamente; temiam reconhecer que ninguém faz política, ninguém consegue se inserir ativa e duradouramente no movimento coletivo real, sem alguma flexibilidade. Por isso, suas intervenções nas lutas políticas careciam de regularidade e eram esporádicas.
Herbert Marcuse, nesse ponto, contrastava com seu amigo Adorno. Embora concordasse com a imensa maioria das posições assumidas por Adorno no plano teórico, Marcuse tinha uma forte disposição a intervir nas ações práticas, nos movimentos políticos. A própria análise que Adorno fazia da gravíssima situação em que se encontrava a sociedade, nas condições do capitalismo tardio, era encarada por Marcuse como razão para engajar-se, com urgência, nos combates possíveis, nas lutas que estavam sendo travadas, sem esperar o aparecimento de um movimento que correspondesse plenamente às exigências filosóficas do pensador engajado.
(...) E em 1968 uma onda de protestos estudantis na Europa, nos Estados Unidos (e até no Brasil) criou uma situação na qual a divergência se explicitou.
Um grupo de estudantes rebeldes invadiu o prédio do Instituto de Pesquisa Social, na Universidade de Frankfurt/Main. Adorno, diretor da instituição, hostilizada pelos estudantes, chamou a polícia para removê-los. Marcuse, seu amigo há mais de 30 anos, mandou-lhe uma carta, divergindo da decisão. Adorno replicou cobrando do outro apoio ao seu esforço para preservar o velho Instituto em que haviam trabalhado juntos. Marcuse retrucou, dizendo que o Instituto não era mais o mesmo, pois vinha pecando por ‘abstinência política’ e não tomara posição contra ‘o imperialismo norte-americano’ na guerra do Vietnã. (...)
A polêmica epistolar está publicada no número 3 da Revista Praga, de São Paulo (1997). Adorno escreveu que a polícia tinha tratado os estudantes de um modo muito mais civilizado do que os estudantes o haviam tratado. Caracterizou o grupo como politicamente isolado e viu na atitude dos jovens algo de ‘fascista’, uma postura que poderia vir a destruir as instituições da democracia representativa.
Marcuse admitiu que havia comportamentos irresponsáveis e ações levianas no meio dos estudantes, porém negou que o movimento estudantil em geral corresse o risco de sofrer um processo de fascistização. Reafirmou seu ponto de vista segundo o qual o inconformismo dos estudantes era um elemento fundamental no questionamento do capitalismo e advertiu Teddy [Theodor Adorno] de que os danos acarretados às instituições da democracia representativa vinham muito mais das classes dominantes do que da rebeldia dos estudantes”.
(trecho extraído do livro A questão da ideologia de Leandro Konder, publicado pela Companhia das Letras, 2002. Páginas 88, 89, 92 e 93).