FECHAM AS PORTAS E ABREM OS CAMINHOS

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Os dias em que a polícia militar invadiu a Unesp pela porta da frente

“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais” (Bertolt Brecht, O Analfabeto Político).

Nos dias 20 e 21 de junho de 2007, a polícia invadiu o Campus da Unesp de Araraquara-SP, manchando a história da universidade pública, cuja identidade fora construída sob as bases da autonomia econômica e, sobretudo, política desta instituição. Na calada da noite, depois do “trabalho científico” de espionagem no melhor estilo dos momentos de totalitarismo – através de agentes infiltrados da polícia para mapear o espaço e os integrantes do movimento estudantil grevista – um contingente de 260 policiais entrou pela porta da frente da FCLAr, interrompendo as negociações que já vinham sendo pacificamente conduzidas.

Nesta madrugada, além de levar 92 estudantes para a delegacia e registrá-los sob acusação de “esbulho possessório”, tal como publicara o jornal Tribuna Impressa do dia 21 de junho de 2007, a equipe da polícia científica continuou dentro da Faculdade, às portas fechadas, até aproximadamente as 7:30 da manhã do dia 20, removendo os pertences dos integrantes do movimento estudantil, que ali foram obrigados a deixá-los, bem como limpando todos os rastros que denunciavam a existência organizada e politizada de estudantes, que deixaram por uma semana a comodidade de suas vidas cotidianas para defender interesses legítimos de uma sociedade cada vez mais apartada do ensino público e de qualidade.

Os cartazes foram rasgados, os murais que informavam a toda comunidade acadêmica sobre as atividades que aconteceriam ao longo da semana foram arrancados, mostrando todas as formas de violência utilizada pela diretoria em parceria com a polícia e o Governo do Estado, contra todos que prezam pela liberdade de expressão e compreendem a necessidade de politização da sociedade, frente aos mecanismos cada vez mais aperfeiçoados de exploração e submissão ideológica à reprodução do capital.

Depois de todas essas medidas, alguns alunos, professores e funcionários convenciam-se de que a “normalidade” havia sido restaurada. A maior parte dos professores, trabalhadores estranhados de seu papel histórico de educadores, tentaram enganar-se de que nada de anormal havia ocorrido em seus espaços de trabalho. Os estudantes, embora de luto, experimentavam o surgimento de um sujeito coletivo. Manifestos de solidariedade chegavam de diversas partes, embalados pelo repúdio à ação policial solicitada pela reitoria da UNESP e arquitetada pela diretoria da FCLAr, em co-autoria com professores membros da congregação – tal como alguns dos mesmos declararam.

Na noite do dia 21, quinta-feira, a polícia militar, autorizada pela diretoria, fechou novamente o Campus, numa infundada manobra de “ação preventiva” que contou com a evacuação de todas as pessoas que ali estavam. O mais surpreendente é que, todos os professores e alunos que, até aquele momento, pressionavam o movimento grevista pela “normalidade” das aulas, naquela noite não hesitaram em permanecer em suas casas. Tal posicionamento, por sua vez, já estava anunciado a partir do momento em que a congregação desta unidade aprovou, em 2006, a portaria 002 criada pela atual diretoria, segundo a qual a polícia fica autorizada a entrar no Campus da FCLAr.

Dentro deste contexto, a passividade política de uma parte dos estudantes e de professores constitui a base de um consenso, em torno do qual se constrói um discurso hegemônico conivente com o processo de sucateamento das instituições públicas de ensino – expresso, pelas formas precarizadas de contratação de docentes, pela terceirização de uma parcela do quadro de funcionários, pela implementação de programas de ensino a distância, pela ameaça de extinção de moradias estudantis, acrescida da intervenção do governo estadual sobre a aplicação dos recursos destinados ao ensino e à produção do conhecimento científico desenvolvido nestas instituições, de modo a adequá-lo aos interesses da acumulação ampliada do capital.

Deste modo, aqueles que desqualificam a legitimidade do movimento estudantil, desconsideram o fato de que as reivindicações apresentadas pelos estudantes contemplam o conjunto da comunidade acadêmica e de toda sociedade, agindo em defesa da integridade de um ensino público, gratuito e de qualidade, para todos.

Mas essa hegemonia, consolidada nestes episódios acima narrados, não deve ser encarada como um fato isolado no tempo e no espaço, já que, segundo o historiador francês, Henri Lefebvre, a história de um dia engloba a do mundo e a da sociedade. Neste sentido, a análise da atual conjuntura exige a compreensão do passado: das lutas internas, do cerceamento ideológico no interior dos departamentos e do apagamento da memória acerca destes acontecimentos.

Por fim, recorrendo a Lefebvre acerca de suas reflexões sobre a vida cotidiana no mundo moderno, é possível afirmar que o cotidiano não é apenas o espaço da repetição, do insignificante e do a-filosófico. É preciso analisar o cotidiano com visão crítica, e não captar o cotidiano como tal, vivendo-o passivamente. Retornando também às idéias de Karl Marx, presentes em seus estudos de juventude, compreende-se que a produção não se reduz à fabricação de produtos. O termo designa, sobretudo, a produção do ser humano e, portanto, a produção de relações sociais.

Assim, as relações de classe na produção material não bastam para assegurar o funcionamento da sociedade em sua globalidade. A vida cotidiana se define como o lugar social desse feedback necessário à continuidade, ou à superação, da ordem vigente. Neste sentido, compreendendo-se a importância da experiência cotidiana como o lugar onde as coisas acontecem, é necessário garantir a presença da memória acerca deste conjunto de fatos narrados, nos espaços onde eles foram encenados, pois o apagamento da memória destrói com os alicerces da transformação da história.

Araraquara, 27 de junho de 2007.